Ensaio: A cidade e as travestis

giulia parreiral
7 min readJan 24, 2023

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Na foto, Kundaline, artista, travesti e prostituta, na praça da Sé. Fotografia por: Pedro Stropasolas, 2022.

Ao fazer uma leitura contemporânea da cidade, podemos concebê-la enquanto espaço produzido para realização econômica e manutenção da estrutura desigual e seletiva da composição do capital na sociedade. O presente ensaio tem como fim elucidar como as travestis, lidas como corpos dissidentes e pseudo-cidadãs, se projetam e atuam no espaço dessa cidade elaborada de acordo com uma lógica mercantil espacial. É válido lembrar que a escala espacial aqui adotada diz respeito a capital de São Paulo, compreendida a partir de revisão bibliográfica e experiências próprias da autora.

A cidade

A origem e formação das cidades na América Latina à maneira que conhecemos hoje advém de um processo histórico e espacial que compreende seu início no processo civilizatório. Apesar disso, muito antes houveram modelos de cidades pela América Latina que antecipavam os traços componentes da cidade como obra, como apresentado por Lefebvre. Assim, essas cidades apresentavam permanência no tempo e espaço (cidades monumentais construídas para durar); autonomia artística e ornamental; valor de uso (espaços públicos para confraternização e socialização); e centralidade (lugar de encontro e confronto entre corpos e ideais).

A cidade enquanto obra apresenta o conceito de valor de uso, definido por Marx, sendo dotada de riqueza que só pode ser realizada de maneira plena em decorrência de seu uso ou consumo. Assim, a cidade enquanto obra surge justamente com as finalidades de ser um espaço dotado de cultura e estabilidade. Segundo Lefebvre (2001), a cidade como obra contrasta com a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas, na direção dos produtos.

Tão logo, o inverso da cidade como obra, que aqui chamaremos por cidade como perversidade, nos traz diretamente aos aspectos mais atuais da cidade. Com o processo civilizatório, temos a destruição da cidade como obra e seus valores, com a consequente construção de uma cidade delapidada quanto a reprodução das relações sociais. A cidade passa então a ser um espaço voltado para um projeto externo, colonial, com mobilização de riquezas e a improdutividade da cidade (Lefebvre, 2001).

Na atualidade, temos uma crescente dominação do capital imobiliário na cidade, sendo esse espaço especialmente produzido através de estratégias cada vez mais elaboradas para a realização econômica (Padua, 2018). A cidade como perversidade se dá então a partir do momento em que o espaço passa a ter um valor econômico, sendo considerado assim uma mercadoria espacial, não mais um lugar dotado de valor de uso pelos cidadãos. Agora a cidade passa a ser um ambiente corporativo, dotado de normas econômicas e produtivas em relação a acumulação de capital.

Santos (2020) traduz esse movimento da cidade como obra para a cidade como perversão ao pontuar que nessa nova dinâmica da cidade os cimentos se dissolvem e mínguam as solidariedades ancestrais. O dinheiro passa a ser a medida de tudo e temos então a economização da vida social, a cidade encontra-se posta à serviço da economia, não à serviço da sociedade. Santos (2020) também nos traz a concepção de que no lugar do cidadão surge o consumidor, que antes de exercer a sua cidadania, exerce o direito de consumir. Nas cidades brasileiras, temos consumidores, não cidadãos.

As travestis

O termo “travesti” deriva do verbo transvestir, que, entre outras definições pelos dicionários brasileiros, pode ter o sentido de vestir roupas do sexo oposto. Apesar disso, ser travesti não se limita a essa breve e corriqueira definição. “Ser travesti” pode ser compreendido como a transição eterna entre o que é socialmente construído como masculino para o que é socialmente construído como feminino. A combinação singular de atributos físicos femininos e a subjetividade masculina é o que faz as travestis serem únicas no mundo.

Apesar de parecer algo recente, ser travesti não se limita a cultura pós-moderna e Roberta Close, como estamos acostumados a conceber a partir da cultura de massas. Platão, aproximadamente em 380 a. C., postula que:

“(…) Outrora a nossa natureza era diferente da que é hoje. Havia três sexos humanos e não apenas, como hoje, dois: o masculino, o feminino e mais um, composto ao mesmo tempo dos dois primeiros.” [fragmento extraído do livro “O banquete”.]

Temos assim, desde a antiguidade, o conceito de travestir-se, apesar de não necessariamente formado por tal definição. Vai além da estética, sendo inerente ao ser em sua realidade concreta. Apesar da conceituação de longa data, a evolução da natureza travesti foi pobremente documentada ao longo da história humana, principalmente ao abordarmos a história das travestis latino-americanas.

A existência das travestis é registrada em toda a América Latina, mas em nenhum país elas são tão numerosas e conhecidas como no Brasil (Kulick, 2008). Contudo, em um país de terceiro mundo, segregado socio espacialmente, as travestis brasileiras seguem um histórico de marginalidade que aparenta próprio de sua condição. Ao citarmos “travesti”, automaticamente surge para o imaginário popular brasileiro a imagem de uma travesti na rua, pela noite, de saltos altos e silicone industrial espalhado por sua territorialidade corporal, vendendo seu corpo e sob a nomenclatura de prostituta se materializa sua principal função — se não, única.

Apesar dessa imagem comum na cultura de massas, as travestis são muito mais do que apenas um momento estático no espaço. Essas pseudo-cidadãs constituem um dos grupos mais marginalizados, temidos e menosprezados na sociedade brasileira (Kulick, 2008). Pseudo-cidadãs, pois, tampouco são reservados a elas os direitos comuns a todo e qualquer cidadão brasileiro. Sequer possuem o direito à cidade, o direito de ser cidadã no sentido pleno da palavra.

Travecas e travessias

Em toda e qualquer cidade brasileira, seja ela pequena ou grande, capital ou interior, existem travestis. Em quase todas elas […] as travestis são de tal forma discriminadas que muitas evitam aventurar-se nas ruas durante o dia (Kulick, 2008). A despeito disso, compreendemos que há uma diferença entre como a cidade é projetada e concebida a partir das vivências de mulheres travestis. Principalmente ao abordarmos a cidade tal qual ela representa hoje em dia, um ambiente corporativo, dotado de normas econômicas e produtivas em relação a acumulação de capital imobiliário.

Se partirmos da dinâmica de produção espacial atual, compreendemos que há uma reestruturação dos lugares na cidade, visando construir uma frente de valorização que forja espaços capazes de atrair a população que irá consumir o lugar (Padua, 2018). O espaço então, possuindo um valor e importância no mercado de capitais, passa a ser um produto de consumo imediato. A mercadoria espacial se materializa a partir do momento em que grandes corporações aplicam o seu capital no espaço. Essa compreensão de que o espaço possui um valor e dele é obtido lucros é definida por Martins (2021) como renda da terra.

Martins (2021) apresenta a renda da terra como um acasalamento entre terra e capital, sendo a terra em si mesma universalizada como equivalente a mercadoria. A propriedade privada no espaço passa então a ser uma mercadoria em si, sendo objeto de valor inestimável na cidade, principalmente nos dias atuais, em que o espaço, mesmo ocupado, passa a ser de grande valor pois pode ser reestruturado quantas vezes necessário para manutenção da reprodução e acumulação de capital. Quem detém o espaço na cidade, detém o capital.

Em contrapartida, as travestis, muitas das quais não possuem sequer casa própria, moram de aluguel, em cortiços sob regime de pensionato, e almejam pela casa própria, podem ser consideradas destituídas do direito mínimo de habitação. Elas, que nem sequer direito ao espaço possuem. Em comparação a definição de renda da terra apresentada por Martins, apresentamos aqui a renda do corpo. Em uma cidade em que mais vale o espaço e sua produção, as travestis, desprovidas de espaço e propriedade privada, nos apresentam a renda do corpo. Sem direito a cidade, sem direito a propriedade privada, e nem sequer direito ao acesso a renda e trabalhos formais, as travestis vendem a única propriedade que lhes resta: seu próprio corpo.

A chegada das travestis à prostituição soa como algo inevitável, mesmo no século XXI. Constituindo parcela pobre da sociedade, a maioria das travestis se locomovem na cidade em busca de sobrevivência, que lhes é negada a todo momento, o que as mantém enquanto pseudo-cidadãs. Na marginalidade, elas se voltam a prostituição como único meio de sobreviver, vendendo ser corpo, único bem que possuem e ainda não foi tomado pela indiferença da reprodução da cidade.

A reprodução da cidade segue sendo um processo contínuo de mutilação de cidadãos. Como apresentado anteriormente por Santos (2020), no lugar do cidadão surge o consumidor, que antes de exercer a sua cidadania, exerce o direito de consumir. Nas cidades brasileiras não temos cidadãos, dotados de direitos básicos e assegurados pelo Estado, temos primariamente consumidores, dotados do direito de consumir. Ainda, quando trazemos essa ideia de Milton Santos para a realidade das travestis, temos aqui mulheres desprovidas dos seus direitos enquanto cidadãs, e desprovidas também do direito de consumir, pois antes mesmo disso, as travestis são consumidas ao vender sua única propriedade, que é seu próprio corpo.

Destituídas de direitos, de espaço e do próprio corpo, a condição de marginalização das travestis se apresenta como um projeto elaborado e produzido na cidade com aval dos mecanismos estatais. A condição das travestis muito se assemelha a condição da cidade de São Paulo atualmente, sendo seu reflexo mais cruel e fiel: desprovida de direitos básicos (como habitação, no caso da cidade, e direitos do cidadão, no caso das travestis), de espaço (dominado pela reprodução e reestruturação do capital imobiliário, no caso da cidade, e direito de usufruir a cidade, no caso das travestis) e desprovida de si (cidades sem cidadãos e sim consumidores, no caso da cidade, e da venda do próprio corpo, no caso das travestis).

Ensaio por Giulia Parreiral, estudante de Geografia pela Universidade de São Paulo e pesquisadora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Referências bibliográficas

KULICK, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Tradução de Cesar Gordon. 1. ed. — Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. 5. ed., 2ª reimpressão — São Paulo: Centauro, 2001.

MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 9. ed., 4ª reimpressão. — São Paulo: Contexto, 2021.

PADUA, Rafael Faleiros de. Produção estratégica do espaço e os “novos produtos imobiliários”. In: A cidade como negócio. 1. ed., 1ª reimpressão. — São Paulo: Contexto, 2018.

SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. 7. ed., 3ª reimpressão. — São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020

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